ANTÔNIA, CORAÇÃO NEGRO


Quando eu era criança, entre 3 e 4 anos, a minha mãe tinha uma empregada negra como noite chamada Antônia. Eu era loira, magra, esquálida, só tinha cabeça. Todo mundo dizia: “lá vem a cabeção”. Para eu comer eu tinha que beijar os pés dela. As vezes ela fazia bolinho de feijão com arroz, passava no pé dela e dizia: “Come branca azeda! Tu vais comer igual aos porcos, aqueles porcos rosinha, nem a tua mãe gosta de ti porque a porca ainda dá de mamar aos filhotes, mas a tua mãe, nada”.

A minha mãe tinha horror de ficar sem empregada porque ela trabalhava fora e era tesoureira da fazenda. A Antônia me disse que se eu contasse à mamãe eu ia apanhar e mamãe não iria fazer nada porque tem medo de me perder como empregada, odeia fazer comida, limpar a casa, etc. Se existe inferno, ela é a secretária preferida do diabo.

Um dia ela me jogou da metade da escada abaixo, eu me lembro tanto desse dia, tanto, tanto que eu me lembro da voz dela. A mamãe nada fez. Ela disse que eu escorreguei, não segurei e quando vi já estava no chão. O meu pai disse: “Seli (minha mãe), a Kátia está se machucando muito, ela precisa ir ao médico”. Então mamãe disse: “leva para a sua mãe para ela leva-la à benzedeira, não precisa ir ao médico não”. Ao chegar na minha avó, ela viu a marca da mão da Antônia nas minhas costas como se eu tivesse sido empurrada. Ela já vinha notando os machucados que eram constantes. Nesse ponto, a criança pequena se torna como o idoso, que apanha e se conforma, pois tem medo de apanhar mais. Minha avó não disse nada, ficou calada, deixou passar um dia e depois foi lá na minha casa. Chegou no ato em que ela estava me batendo com a correia, porque ela amassou o feijão com arroz com o pé e eu não queria comer porque estava fedendo à creolina, então a minha avó fez um escândalo e chamou meu pai que ameaçou prendê-la. Ela ainda disse: “Ai Sr. João, por favor, não faça isso, tenho sobrinho doente, mãe doente, todo mundo estava doente e sua filha não queria comer”. Eu disse: “não pai, eu não comi porque ela botou aquele negócio preto que ela usa para limpar o banheiro (creolina)”. Quando ela ia pegar o prato a Antônia correu para jogar o prato no lixo, mas a minha avó já o tinha pego e estava segurando. Era pura creolina.

Por isso que eu era magra e seca, eu nasci desamparada pela vida e a mamãe ainda ficou com raiva porque perdeu a empregada, dizendo:” João, você sabe que a Kátia é quieta, não quer comer e as vezes ela implicou com ela, que não quer comer com a Antônia, mas ela está na rua”. Meu pai deu dinheiro a ela e disse: “Nunca mais volte aqui”. Ela ainda teve a coragem de dizer: “Ah, mas vou sentir saudades da loirinha azeda.” Eu era roxinha, todo mundo dizia que eu era uma criança triste. Mas existe um Deus, ele é pai e padrasto. Até hoje eu não acredito que minha mãe não via os machucados. Ela tem 2 meses de morta e as vezes fico me lembrando o que ela me fez para ver se ainda sinto saudades. Como eu poderia ser ruim se sinto saudades e tanta falta dela?  Se Deus chegasse para mim e me dissesse que eu tenho direito a um pedido só eu diria: “Me devolva a minha mãe porque eu sinto falta dela, hoje eu abençoo cada cintada que ela dava”. Deus sabe que não é mentira e não foram poucas. Eu tenho marcas das fivelas do cinto do meu pai. Onde quer que ela estiver, que ela esteja bem, que ela não fracassou de tudo porque ela tem uma filha apaixonada por ela que todos os dias chora. Até casei porque ela mandou, mesmo sem gostar do rapaz. Fique 42 anos com ele. Agora que ela se foi estou livre, mas eu preciso me conhecer, eu fui tudo o que ela mandou e preciso recuperar a minha identidade, não sei quem eu sou.

A Antônia ficou em casa desde quando eu tinha 1 ano até meus 4 anos. É a única coisa que eu devo à minha avó. Aí nasceu meu irmão Krause e minha mãe só tinha olhos para ele e me disse que eu tinha sido trocada na maternidade, mas como se era só eu quem estava lá? E o Krause era o filho que ela quis, menino, pois ela não queria menina. Mas Deus existe, como eu digo sempre e é justo. O tempo passou e eu fiquei a cara dela, todo mundo dizia isso no hospital e eu retrucava dizendo que ela dizia que eu tinha sido trocada no hospital, mas a língua é o chicote do rabo. Por isso pense muito antes de dizer as coisas, pode haver supressas.

Kátia Paes


OBS1: O nome da empregada foi trocado para evitar prejuízos aos herdeiros, pois ela foi amante de um soldado militar.


OBS2: Outras histórias serão narradas, pois é muito doloroso reviver tudo isso e ainda me vejo andando de calcinha mijada pela casa. É sofrer tudo novamente ao escrever. 


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